sexta-feira, 30 de julho de 2010

Descabelado tanka


Quando resolvo falar de uma obra, acho importante começar contando como ela chegou até a mim. Gosto de exaltar a sensação das descobertas da leitura e da estreita relação entre o leitor e o livro, puro presente da realidade. Desta vez, não achei a novidade numa livraria. Uma nova amiga encontrou-a bem longe das terras sergipanas e lembrou de trazer para mim. Tem melhor lembrança do que essa? Confesso que fiquei surpresa e receosa. Como lidar com o novo? E quando esse novo se chama “Descabelados” e foi escrito por uma poetisa japonesa?

Bom, mas vamos lá. Pesquisei um pouco sobre o assunto e descobri que Yosano Akiko só tem uma obra traduzida para o português. Esse “Descabelados” faz parte da Coleção “Poetas do Mundo” e é editado pela Editora UnB. Livrinho de bolso, apresenta algumas explicações sobre a poeta e a técnica por ela utilizada, além de trazer, nas páginas da esquerda, o poema no original em japonês, e nas páginas da direita, o poema já traduzido.

Uma coisa é certa: difícil é analisar poemas traduzidos, principalmente quando a gente sabe que muito se perde de conteúdo, muitas vezes tão característico daquela língua e daquela cultura. Sem contar que muito da forma, da rima, da melodia, do jogo dos signos se esvai durante uma tradução. Até a própria interpretação do tradutor soma-se ao que vai resultar na poesia final.

Como não entendo nada de japonês, já me sinto grata só de poder me aproximar desse material que é tão vasto e que é estreitamente ligado ao estilo dos hai-kais, bem difundido no Brasil através do poeta Paulo Leminski. No caso de Yosano Akiko, que viveu entre 1868 e 1912, o estilo mais usado é a composição de forma fixa conhecida como “tanka”. Literalmente, “tanka” significa "poema curto" (tan - curto, breve; e ka - poema ou música).

Pois bem. Esta reunião de tankas de Akiko atrai o leitor justamente pelo acentuado lirismo na poesia. Ela renovou o tanka, vista como a forma mais popular de poesia japonesa. Além disso, criou uma poética moderna pela inserção da própria experiência individual e dos seus sentimentos no modelo clássico de poesia japonesa.

A apresentação do livro resume a importância de Akiko para a literatura japonesa: “Yosano Akiko distinguiu-se desde o princípio como inovadora e portadora, em suas obras, de uma forte consciência feminista. A sua poesia, surgida no momento em que se assistiu ao reflorescer do tanka, ficou famosa pela audácia e pela quebra de convenções, pela linguagem explícita e pelo uso informal da poética tradicional”.

Segue abaixo dois tankas:

a primavera
penso nesta peônia
de sangue ou de amor?
passo a tarde sozinha
incapaz de poemas
---------------------------------
foi ontem talvez
há mil anos passados
o acontecido
ainda agora sinto
as tuas mãos em meus ombros

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Refluxo

As pálpebras cerram o doce recato do sonho. Uma vez desalimentado, o desejo cospe no prato da agonia e relembra cada revés com o carinho de um animal pronto para dar o bote. Melhor mastigar vazio do que vomitar seco o que não se consegue expurgar. Perdido no meio do acaso, o baile da digestão emocional garante boas fisgadas, dançando gostos e ilusões. Refluxo do tempo, embrulho da noite, engasgo do dia. A vida tem descido consistente, úmida, em círculos indecifráveis e nauseabundos. Chamem o futuro, sequem as roupas da ansiedade, vistam as cinzas da revolta e cantem cores porque os músculos da vontade querem dançar.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Contra o vento

Vontade de desabafo. De sambar em cima do que se discorda, do que dá nó na goela, do que faz a carne tremer e mostrar que estamos mais do que vivos: impacientes. Por que essa testa enrugada, sem entender que a vida funciona assim, só assim, que dói só de pensar na ilusão que os outros criam. E dói mais ainda acreditar que você também está visualizando a realidade com as cores que escolheu. Quem garante o absoluto? E essa indignação de ver o mundo acreditando na primeira máscara que se apresenta? Não existem parâmetros para definir o que verdadeiramente é real daquilo que é mera representação alienante? A casca grossa da indignação protege o núcleo sedento por claridade. O mundo diz sim ao absurdo. Eu digo não ao mundo. E vivo muda de maré contrária.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Acreditemos nos contrários

Vou começar esse post sabendo que poderei levar críticas, mas atesto que sou uma consumidora de enlatados e de produtos da indústria cultural bastante consciente. Prosseguindo o rumo da conversa, quero aqui falar das letras das canções do padre Fábio de Melo. Não. Você não está delirando. Estou realmente querendo comentar e, por que não, elogiar aquilo que acho merecedor de aplausos.
Esqueçamos o fato de ele ser padre, de ser católico, de pregar coisas absurdas como o não uso da camisinha e do anticoncepcional, de ser um cara que "se aproveita" das ferramentas que possui para obter sucesso. Antes de tudo, é alguém que escreve algumas letras e alguns trechos de música como se nada tivesse a ver com a sua realidade celibatária.
Mas, enfim, vamos ao que interessa. Alguns versos de Fábio de Melo são pura poesia, daquelas simples, diretas, que vão lá no fundo buscar verdades em forma de rimas e melodia. É encantadora a forma como consegue dizer tanto, com fluidez, em frases que juntas fazem todo o sentido.
Bom, não saberia analisar poemas, muito menos os de Fábio de Melo, pois acho que observar o simples é que é o mais difícil, ainda mais quando estamos influenciados pelo preconceito. Só recomendo o seguinte: olhemos mais para o núcleo das questões. Sempre é possível encontrar uma flor no meio de um deserto, no caso, uma poesia dentro do que possivelmente já está manchado pela crítica "cult" brasileira.

Segue abaixo um trecho de uma música que diz muito. Pelo menos pra mim. Afinal, às vezes a questão é só sentir. E não explicar.

Contrários
(Padre Fábio de Melo)


Só quem já perdeu na vida sabe o que é ganhar
Porque encontrou na derrota o motivo para lutar

E assim viu no outono a primavera
Descobriu que é no conflito que a vida faz crescer

Que o verso tem reverso
Que o direito tem avesso
Que o de graça tem seu preço
Que a vida tem contrários
E a saudade é um lugar
Que só chega quem amou
E que o ódio é uma forma tão estranha de amar

Que o perto tem distâncias
E que esquerdo tem direito
Que a resposta tem pergunta
E o problema solução
E que o amor começa aqui
No contrário que há em mim
E a sombra só existe quando existe alguma luz.