quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Sobre "Malu de Bicicleta"


Em dois dias terminei de ler "Malu de Bicicleta", de Marcelo Rubens Paiva. Um amigo, envergonhado pelo teor da leitura e vendo que eu estava investindo em contos eróticos, resolveu me emprestar a obra. Me encantei com o texto envolvente, simples, direto, tosco e palpável do autor.

Diferentemente do que dizem algumas críticas, que resumem o texto a uma comparação com a obra "Dom Casmurro", de Machado de Assis, eu acredito muito mais no dia-a-dia da palavra, escrita em folhas rápidas, descrevendo taras e transas. O livro é muito mais do que uma dúvida do personagem principal, Luiz, com relação à (in)fidelidade da esposa, Malu.

O texto é daqueles que prendem o leitor até o fim, seja pelo escancaramento da face oculta da sexualidade humana, seja pelo enredo que faz com que queiramos acompanhar as aventuras do personagem, que por si só já rendem belas memórias de um "galinha", intitulado assim na obra.

"Malu de Bicicleta" foi publicado em 2003 e este ano virou filme, lançado recentemente em alguns cinemas do Brasil. Aqui em Sergipe ainda não chegou, mas espero ansiosamente para ver na telona aquilo que foi descrito com tanta sutileza, coragem e desprendimento. Palmas para Marcelo Rubens Paiva, gênio da literatura erótica brasileira.

Segue abaixo um trecho do livro:

"Na vida, Cris tinha uma paciência do cão. No sexo, era uma 'pênica'. Contradição. No sexo, nenhuma questão de ser tocada, lambida, chupada, acariciada, admirada, cantada, esfregada, massageada. Como se não sentisse nada, além de um incômodo ou cócegas. E nunca me tocava, lambia, chupava, acariciava, admirava, cantava, esfregava, muito menos massageava. Era como se meu corpo fosse invisível, indolor, insensível. Cris só gostava de uma coisa, do meu pau dentro dela". (p. 115)

domingo, 24 de outubro de 2010

Retenção e expurgo


Preciso sentar agora. A notícia veio de longe, mas chegou sem piedade, cortante, fazendo-me engolir seco o ar destes minutos atuais. Há muito tempo não sabia o que era sentir a desgraça se fazendo carne e vísceras na minha frente. Não fazia questão de entender as ruínas alheias porque minha vida parecia um mar sereno, cheio de gaivotas e o balançado natural das ondas. E agora estou diante de uma ferida aberta, estornando sangue, pus e agonia.

Vou fazer um café para espantar os pensamentos que me tomam nesse instante. Quem sabe assim, jogo para bem longe a certeza da realidade e fico a sonhar com o que poderia ter sido. É tão mais doce imaginar o diferente, a delicadeza de momentos esperados, o beijo da fantasia a espreitar o que há de mais recôndito em mim.

Farei melhor: antes que o mundo me procure, pegarei agora a minha bolsa e sairei sem rumo nesta cidade cinzenta e domesticada. Quero me perder por entre ruas e vielas até encontrar o suspiro do equilíbrio que perdi há pouco. Ou então olhar para o vazio desta madrugada e aceitar aquilo que simplesmente já “é”.

Não posso querer virar para trás. O passado não me traz mais nada. Ele foi e não pode mais ser. Ainda bem. Não sei se quereria acordar todas as dormências boas e ruins que aparecem nos retratos. E continuo aqui, nessa angústia de viver o instante. Esses segundos que me sufocam, me aprisionam, me deixam desejosa do futuro.

Estou voltando pra casa. Lá eu me reconcilio com os meus livros, minhas dores e meus afazeres. Lá também eu me entrego aos prazeres da gula e das descobertas solitárias. Afinal de contas, saber que caiu água sanitária no meu vestido preferido não é fácil. Aproveitei pra botar pra fora todas as minhas mágoas da vida. E a peça de roupa era linda: me sentia perfeita e feliz nela. Agora vou dormir. Amanhã compro outro vestido.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Peça sobre Clarice Lispector









Como prometido em outros posts, aqui vão as minhas impressões sobre a peça "Simplesmente Eu, Clarice Lispector", que está em cartaz no Teatro Renaissance, em São Paulo. Primeiramente, devo falar da minha expectativa em torno de um espetáculo que por si só já chamou a atenção da fã de Clarice aqui. Tudo aconteceu por obra e graça do universo. Pois é... acredito no "que tinha que ser". Há muito tempo já vinha acompanhando pela internet o percurso dessa peça, mas até então não sabia que ela aportaria em SP justamente no período em que passaria um final de semana por lá.

Pois então, faltando uma semana para a viagem, eis que fico até mais tarde assistindo Jô Soares (não tenho esse costume) e vejo a entrevista da atriz Beth Goulart falando sobre a peça e contando em qual teatro estava. No outro dia, logo cedo, comprei os ingressos pela internet. E...pasmem! Só tinha 7 vagas para o dia em que eu poderia assistir. A sorte é que todas eram bem localizadas, na parte da frente, bem no meio, para que eu pudesse olhar nos olhos daquelas verdades clariceanas.

Cheguei em cima da hora, mas consegui numa boa me concentrar para aquele momento que seria um dos mais mágicos da minha vida. A peça inteira é um monólogo perfeitamente conduzido por Beth Goulart, que troca de roupa sutilmente e se utiliza de cadeiras, divã, cigarros e taças de vinho para compor a personalidade de Clarice, tão complexa e simples ao mesmo tempo.

Nem o frio de 16 graus (sensação térmica de muito menos) fez com que eu desanimasse diante de tamanha interpretação da atriz que deu vida - ou pulso de vida, como preferiria Clarice - a uma Lispector carente, amorosa, meiga e forte ao mesmo tempo. Beth Goulart se arriscou na famosa língua presa de Clarice e soube transmitir cada pensamento da escritora. Tudo o que foi dito, foi retirado de algum livro ou da própria biografia de Clarice. Também houve um momento em que fazia menção à entrevista de Clarice concedida à TV, onde ela responde, com altivez, a quem lhe pergunta o por que de escrever: "Por que você bebe água?.

Em alguns momentos, uma Clarice chorosa, pedinte de colo, com aquele probleminha na língua, e ainda com o suporte da representação da atriz, fazia com que o público viesse a rir. Eu não ri. Não senti que era pra rir. Talvez porque nunca tenha lido Clarice de um jeito mais leve. Sempre via tristeza e carência em seus apelos. Mas se as pessoas conseguem vê-la à distância, como uma criança que está com birra, talvez seja o caso para repensar as formas de interpretá-la.

Durante o espetáculo, que durou cerca de uma hora e meia, a plateia se manteve imóvel, em silêncio, assistindo a uma narração perfeita, movimentos compassados, a própria incorporação de Clarice naquele palco que estava ali, tão próximo de mim. A atriz, que às vezes parecia estar com Lispector no corpo, olhava para o público. Às vezes sentia o olhar perdido, queria que fosse direcionado pra mim, como se Clarice - minha guia - estivesse querendo me dizer algo. Deixem eu sonhar, delirar... É coisa de fã...hehehe

Quando terminou a peça, a atriz foi aplaudidíssima de pé, é claro, e ainda incentivou que todos nós buscássemos refletir sobre tudo o que absorvemos naquela noite mágica. Ao final, Beth Goulart, muito gentil, fez o sorteio de 3 livros de Clarice. Mas nunca tive sorte com sorteios. Depois, o staff do espetáculo entregou um livreto com fotos e que conta um pouco da história da peça. Lembranças em papel que vão ficar pra sempre comigo: o livreto e o ingresso. Repito: coisa de fã...hehehe

Agora, saindo das minhas impressões, vão aqui algumas curiosidades sobre a peça: o espetáculo é escrito e dirigido por Goulart, que recebeu o Prêmio Shell - RJ como melhor atriz por sua interpretação. Sozinha no palco, Goulart interpreta a autora e quatro de suas personagens: Joana, de "Perto do Coração Selvagem"; Ana, do conto "Amor"; Lóri, de "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres"; e uma outra mulher sem nome, do conto "Perdoando Deus".

Confissão: em alguns momentos, se a atriz parasse de falar os escritos, eu seria capaz de fechar os olhos e continuar a narrativa. Emoção mesmo foi quando ela interpretou a prece de Clarice, pra mim, uma das mais belas do mundo. Depois posto aqui pra vocês conhecerem. É isso. Não teria como falar isenta das emoções. Sou lispectoriana até a última gota de sangue. Ou como diria Clarice, sou muita vida nesse instante-já.

Ah, só um detalhe: o espetáculo não pode ser fotografado e nem filmado.