segunda-feira, 24 de maio de 2010

Vivendo Bach - Gruta de mim


Viver é... ouvir a Suíte nº 3 Do Majeur, de Bach; escavar sentimentos encrustados na gruta do passado e lapidar as lembranças para que, polidas, elas brilhem longe e sem cegar; ter um bom lugar para deitar e esperar o púrpura das sensações esfriar a amargura das sucessivas derrapagens; dançar descalço nas pedras da incerteza e rir, com o vento, da passagem das rugas e das estações; gastar os créditos da vaidade, da precisão e da insanidade; gozar de frutos e flores no meio de um pensamento nebuloso; despir-se das cores, das máscaras, das franjas que escondem o rosto; respirar o ar mais fundo que tiver, olhar para cima e segurar o instante para si.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Inclinação


Vontade de olhar para trás, limpar os restos de cada revés, olhar no olho do passado e gastar os resquícios daquelas lembranças. Só assim para esquecer o absurdo, a mente congelada no que antes parecia ser o abismo dos sentidos. Sentar na beira da estrada e esperar o ônibus do próximo instante carregar todos os beijos de amor e ódio para bem longe, onde só se acumulam lixões de sonhos abortados. Mas aí vem o desejo do retorno, as marcas que se entranham na pele adentro, as cicatrizes do que se viveu sem saber por quê. Dança das ilusões surgindo na esquina da mente, apontando para uma tristeza infinda. E segue a busca pelo momento do que ainda vai chegar, já que é pra frente que se inclina. Festa das flores: andar cheio de claricices nesta caminhada.


Imagem: Quadro 'Persistência da Memória', de Salvador Dali

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Fadiga dos sentidos

Esse som amargo
que retorna com a saliva
e faz arrepiar a ponta da língua
é o caminho do vazio.

Onde se vê claro,
é áspero,
folha rugosa,
espinho da mente.

A fadiga dos sentidos,
perigo desse instante,
não sabe desmazelar

Quebraram as algemas
dessa aleatoriedade dos sonhos,
e agora preenchamos o dia
com possibilidades reais de amor e lágrimas.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Coletâneas sem noção


Nos últimos anos tem se proliferado análises literárias, coletâneas e diversos livros de biografia, troca de cartas, entrevistas, fotos e frases de Clarice Lispector. Ótimo! Significa que a 'bruxa do instante-já' está cada vez mais popular. Mas, o último lançamento no mercado chega a ser patético. A ideia agora é só vender, vender e vender cada vez mais, se aproveitando da cegueira dos colecionadores e apaixonados pela escritora.

Trata-se de uma coletânea de contos de Clarice, escolhidos por diversas personalidades brasileiras que não se encaixam em nenhum nicho ou tribo ou setor específico. O livro chama-se 'Clarice na Cabeceira', foi organizado pela doutora em Letras, Teresa Montero, e editado pela Rocco.

A obra contém contos escolhidos por 22 pessoas que, segundo a organizadora, tem alguma influência no panorama cultural brasileiro. Fazem parte dessas escolhas, Luis Fernando Veríssimo, Fernanda Torres, Rubem Fonseca, Adriana Falcão, Maria Bethânia, Mônica Waldvogel e Malu Mader.

Antes de cada texto, aparece uma apresentação pelo participante que o indicou. A matéria do portal Uol chega até a mencionar: "Nem todas as apresentações são instigantes e algumas delas até merecem ser puladas, para não perder o êxtase em torno da obra clariceana".

O livro compreende contos das obras: “Laços de Família” (1960), “A Legião Estrangeira” (1964), “Felicidade Clandestina” (1971), “A Via Crucis do Corpo” (1974), “Onde Estiveram de Noite” (1974) e “A Bela e a Fera” (1979).

Lispector virando Coelho

Clarice tem um livro chamado 'O mistério do coelho pensante'. Será que as editoras acharam que ela se referia inconscientemente ao Paulo Coelho e agora querem torná-la a todo custo uma popstar da escrita?

Bom, mas por que você, leitor, compraria este livro, tendo tantos outros da própria Clarice à disposição nas livrarias? Repare se vou ler algum conto só porque Malu Mader indicou... Eles não perceberam que o leitor de Clarice não precisa ir pelos outros. Ele chega em cada linha por si só, curioso, pra dentro, gotejando sentimentos, com o sopro de vida que a autora nos deixou...

P.S.: A capa é o único sentido deste livro.