domingo, 24 de outubro de 2010

Retenção e expurgo


Preciso sentar agora. A notícia veio de longe, mas chegou sem piedade, cortante, fazendo-me engolir seco o ar destes minutos atuais. Há muito tempo não sabia o que era sentir a desgraça se fazendo carne e vísceras na minha frente. Não fazia questão de entender as ruínas alheias porque minha vida parecia um mar sereno, cheio de gaivotas e o balançado natural das ondas. E agora estou diante de uma ferida aberta, estornando sangue, pus e agonia.

Vou fazer um café para espantar os pensamentos que me tomam nesse instante. Quem sabe assim, jogo para bem longe a certeza da realidade e fico a sonhar com o que poderia ter sido. É tão mais doce imaginar o diferente, a delicadeza de momentos esperados, o beijo da fantasia a espreitar o que há de mais recôndito em mim.

Farei melhor: antes que o mundo me procure, pegarei agora a minha bolsa e sairei sem rumo nesta cidade cinzenta e domesticada. Quero me perder por entre ruas e vielas até encontrar o suspiro do equilíbrio que perdi há pouco. Ou então olhar para o vazio desta madrugada e aceitar aquilo que simplesmente já “é”.

Não posso querer virar para trás. O passado não me traz mais nada. Ele foi e não pode mais ser. Ainda bem. Não sei se quereria acordar todas as dormências boas e ruins que aparecem nos retratos. E continuo aqui, nessa angústia de viver o instante. Esses segundos que me sufocam, me aprisionam, me deixam desejosa do futuro.

Estou voltando pra casa. Lá eu me reconcilio com os meus livros, minhas dores e meus afazeres. Lá também eu me entrego aos prazeres da gula e das descobertas solitárias. Afinal de contas, saber que caiu água sanitária no meu vestido preferido não é fácil. Aproveitei pra botar pra fora todas as minhas mágoas da vida. E a peça de roupa era linda: me sentia perfeita e feliz nela. Agora vou dormir. Amanhã compro outro vestido.

3 comentários:

Fátima Lima disse...

Lara, Lara, Lara lendo o breve escrito senti instantaneamente a metáfora presente na " Paixão Segundo G.H" onde, através de “algo”, “um acontecimento”, “um objeto”, a narração vai nos levando pelos interiores, pelo demasiado subjetivo, sem perder a conexão com a realidade. Esse liame entre a subjetividade e o que o real nos informa reflete as tensões do viver... Assim me vejo no texto... Sinto o gosto do café e a dor das feridas gangrenadas... Sua veia Clariciana acendeu... PS . Estou chegando em Aju hoje a noite... Quem sabe não te encontro pelas ruas da cidade para um café... Abraços.

Lara disse...

Fátima, vamos mesmo tomar um café!! Estou procurando seu telefone e nao estou achando. Mande para o meu e-mail: larajor@yahoo.com.br

Bjos

Anônimo disse...

Madrugadas, o que são essas madrugadas? Nem vou falar que gosto muito do que tenho lido porque senão vou massagear tanto o seu ego que quando eu falar alguma coisa que não goste de ouvir a sua pessoa não mais ficará enraivada, ou melhor, inflamada com que falo e talvez minhas críticas percam a serventia. Mas vamos lá, trabalhe duro, escreva mais, engane o cansaço e as dores, esqueça que tem estômago e trabalhe muito mais, pois só assim terei o prazer em ver, em primeira mão o objeto de tanto desejo e luta.

P.s.: Estou precisando sair sem rumo para pensar nas roupas manchadas que estão deixando de compor meu guarda-roupa!

Kiko