terça-feira, 13 de outubro de 2009

Contos de Lucia Castello Branco

Você já ouviu falar em Lucia Castello Branco? Não? Natural... É difícil encontrar informações sobre essa ensaísta de mão cheia até no Google. Lucia é carioca, professora de Literatura Comparada na UFMG e já publicou ensaios, contos e livros infantis. Mas o que Lucia mais sabe fazer é trabalhar a linguagem, utilizando tons mais úmidos e íntimos, como se estivesse, com sutileza, abandonando a grossura do mundo pra desvelar o indizível.
Em seu livro “Contos de amor e não” – que título sugestivo hein? -, publicado pela editora Lamparina, Lucia Castello Branco derrama realidade com seus encontros e desencontros, tratando sem piedade dos revezes do amor, salientando a grande probabilidade do “talvez”, tão corriqueiro nos estados de paixão. Sinestésica até o último “não”, a linguagem de Lucia perpassa pelo mundo dos opostos, das contradições, das vontades e desvontades de que é feito o amor.

Digitei logo abaixo um dos textos de "Contos de amor e não":

“Talvez”

“Amanhã nos falaremos. Talvez...”
Então isso era tudo? Era assim que ele a abandonava? Antes o senhor do silêncio, depois o senhor das sofreguidões, depois outra vez o senhor do silêncio, assim em meio às reticências, era esse o tudo a que se reduziam tantas palavras ditas e por dizer?
Ela atravessava a rua, retirava o batom, a gargantilha, os anéis. Ela retirava a gargantilha e, nesse gesto seco, áspero, era como se a mão dele ali estivesse a lhe cortar a garganta. “Nunca mais lhe direi” – ela pensava – “nunca mais lhe direi”.
E caminhava, passos lentos, como quem pudesse se abandonar à noite. Nos sinais de trânsito, os meninos, subitamente transformados em palhaços de circo, engoliam fogo. Isso era a desgraça: pequenos homens, meninos ainda, engoliam fogo. E ela, que mal conseguia engolir as próprias lágrimas enquanto atravessava a rua, tinha medo de que o pescoço não suportasse a gargantilha de contas negras, não sustentasse a cabeça de pensamentos baços, não suportasse os ombros sem memórias de afagos, sem futuros de afagos, sem afagos vãos.
“Meu Deus” – ela se lembrou – “preciso ainda comprar algumas gotas de chocolate para adoçar a boca de meu pequeno”. Sim, o filho, também um menino que amava fogo, havia ficado sentado no canto da cozinha, implorando por gotas de chocolate.
Mas, a essas horas, já não havia lojas abertas. Já não havia chocolates, nem meninos insones, nem vozes de criança. O que havia era a noite e o aberto da noite e o aberto de uma garganta que não diria nenhuma das palavras que a noite lhe pedira, e o aberto de um céu sem estrelas e de um amor suspeito.
Até que, do outro lado da serra, ela avistasse a lua. Branca a noite sem estrelas, mas havia a lua.
Aberto, como se a convidasse à suspensão, o manto da noite a envolvia. Como a envolveriam os braços dele, se possível fosse dilatar a noite, como a envolveriam os meninos engolidores de fogo, se ela se entregasse a seus afagos, como a envolveriam as palavras enfim pronunciadas se a garganta em soluços sufocada não fosse interrompida pela lâmina fina de um talvez.

Um comentário:

Fátima Lima disse...

Lindo o conto... Nunca havia lido Lucia Castello Branco.. nunca tinha lido num conto o talvez como fio da navalha.. Muito bom.. Abraços.

Fátima