quarta-feira, 2 de junho de 2010
Um encanto de Ó
Foi através da revista Cult que conheci Nuno Ramos, paulista nascido em 1960, artista plástico renomado e autor dos livros Cujo (1993), O pão do corvo (2001), Ensaio geral (2007) e Ó (2008). E é deste último que vamos falar nesta postagem.
Desde a leitura da sua entrevista na revista, fiquei curiosa pela sua escrita e prometi a mim mesma comprar um de seus livros pela internet, mas não foi necessário. Para minha surpresa, semanas depois encontrei o livro Ó na Escariz e tive a certeza de que ele deveria voltar para casa comigo.
Publicado pela Iluminuras, editora que segue um padrão criterioso de qualidade e de material gráfico, Ó espanta pela sutileza, pelos parágrafos corridos um tanto saramagueanos, pela vibração rítmica das histórias de dentro, pela fluidez da palavra e pela melodia despretensiosa da narrativa.
Ao mesmo tempo suave e arisco, Nuno Ramos é verborrágico e não tranca palavras para descrever os detalhes nos textos. Não saberia definir se são contos. Aliás, talvez seja uma escrita ainda inclassificável. E esse tipo, ou seja, o tipo do não tipo de escrita, é o mais atrativo porque traz o novo, o que não foi decifrado, o que está por ser descoberto. Ó é dessas obras que rompem estruturas de linguagem, que quebram a vida dos tradicionais gêneros literários e das modalidades de discurso.
O livro é dividido em vários Ós. Confiram os dois trechos abaixo:
2º Ó
Não vejo o ar onde cede e verga, em suas juntas, não vejo onde o espaço, transparente, dobra e dança, e cresce feito maré ou leite fervendo, não sei ainda quando o que é sólido vira espuma, a qual temperatura exatamente, nem porque isso acontece, nem posso apertar a alcatéia entrelaçada da vontade e da poesia, não posso soltar essa matilha – estrela, estrada, estrume – porque não ouço o que para mim é ó ainda. Perco os seus sinais, minha agonia, haste sem bandeira fixada numa luz branca e solitária, navio cargueiro derrubado a seco, coração no oco da palavra.
5º Ó
Não há corpo que me prenda. Não há pena que me cubra. Não me machucam as mãos não saber nada delas. Não me machucam as mãos ter um estoque de palmas – e de pés e de pâncreas. Não posso transplantar meus órgãos, embora tenha tantos sobrando. Faria dinheiro com isso. Tenho sete retinas no bolso, duas plantas em cada pé. Lanço do viaduto o infinito intestino. Atiro no chapéu do mendigo o anel de um cu antigo e deixo afundar no asfalto uma de minhas testas.
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